Rabiscos sobre certezas em constantes metamorfoses

rico não é o homem que coleciona e se pesa no amontoado de moedas, e nem aquele devasso, que se estende, mãos e braços, em terras largas; rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não sua ira. (R. Nassar)

Nome:

uma mistura de todos vcs.

28 novembro, 2005

E, foi assim que se deu...


Ela olhou para o marido e, no seu gesto característico de semicerrar os olhos e movimentar quase que imperceptivelmente as pálpebras, botou toda a sua vontade:- Eu quero Glauber.- Preste atenção, Lúcia: em janeiro, aquele conde, o Crespi, morreu em São Paulo e deixou um dinheirão pro Mussolini. No mês passado, o general Góis Monteiro foi convidado pra participar de manobras do exército alemão. O presidente Vargas está namorando com o facismo e o nazismo, e isso está me cheirando mal.Lúcia apontou o nariz arrebitado:- Mas ouvi no rádio, outro dia, que Getúlio tomou dinheiro emprestado nos Estados Unidos; portanto, não me venha com essas conversas, que isso não tem nada a ver com o nome do meu filho.- Como não tem? - Adamastor já estava irritado. - Ninguém sabe que partido Vargas vai tomar, o país pode pegar fogo se ele apoiar Hitler, e você quer botar um nome alemão no menino?- Escuta aqui, Adamastor, eu sei que você gosta de política, que você é contra Getúlio, sei que você sente orgulho do seu tempo de Coluna Prestes. Sei de tudo isso. Mas Glauber é o nome de um cientista que fez um bem pra humanidade e morreu há muitos e muitos anos. É outra história.- Fique certa de que vai ser Pedro - Adamastor encerrou o assunto.Uns pedaços da conversa entravam pela janela do quarto onde Iaiá estava bordando e ouvindo rádio. Nada a impedia de ouvir música, mas o programa apresentava sucessos de carnavais passados e, como era a única pessoa católica naquela casa de fervorosos protestantes, tinha receio de incomodar. Por isso, ligava o rádio bem baixinho. Mas como estava participando, mesmo que involuntariamente, da discussão do casal de cunhados, aumentou o volume. Na Rádio Nacional, o cantor despejava toda a emoção na marcha-rancho:- ... linda criança/ tu não me sais da lembrança/ meu coração não se cansa/ de tanto, tanto te amar.Ainda bem - pensou - que ela e Flávio estavam combinados: se o filho fosse um menino, teria o mesmo nome do pai.Algumas horas mais tarde, a tranqüilidade de Iaiá tinha sido substituída por uma grande movimentação. O bebê de Lúcia dava sinais de que iria nascer, e todas as mulheres da casa foram convocadas para as providências.Mandaram trazer mais lenha do quintal. A torneirinha da chaleira embutida no grande bloco de tijolo que formava o fogão de lenha ia despejando a água fervida nos baldes e bacias de ágata. Uma criada estava encarregada de manter a chaleira sempre cheia. Outra cuidava da roupa. Adamastor tinha saída a galope para buscar o Dr. Orlando Spínola.- Força, Lúcia!Os minutos passavam:- Força, Lúcia!As horas passavam:- Por que essa criança não nasce? - Adamastor, marinheiro de primeira viagem, era a imagem da impaciência.- É muito grande, e Lúcia tem a bacia pequena.O médico suava, na noite fria de Conquista. Adamastor enxugava a testa em plena noite fria de Conquista. A camisola de Lúcia era trocada de meia em meia hora, porque estava ensopada de suor, apesar da noite fria de Conquista.Depois de várias tentativas, o médico fez um sinal para Adamastor e saíram do quarto. Na sala, falou bem baixo:- Lúcia corre perigo. Vai ser preciso sacrificar a criança.Antes que Adamastor autorizasse, ouviram o grito de Lúcia:- Não vão sacrificar meu filho! Se for pra morrer, vamos morrer os dois juntos, mas não quero que sacrifiquem meu filho!D. Marcelina apertou a filha nos braços, segurou sua mão:- Tenha fé em Deus.Agitada, Lúcia falava sem parar:- Eu entrego meu filho nas mãos de Deus. E ele vai nascer!Não disse mais porque a mão do médico, segurando um pano branco embebido em clorofórmio, chegou junto ao seu rosto.O médico tirou a criança a fórceps. Pesava cinco quilos. Era a madrugada do dia 14 de março de 1939, data de aniversário de Castro Alves, e o relógio na parede da sala marcava três horas e quarenta minutos. Ainda sentido o efeito do clorofórmio, Lúcia acordou com o grito emocionado de Adamastor:- É homem, Lúcia! É Glauber!
(trecho contido no livro "Glauber - A conquista do sonho" de Ayesca Paulafreitas e Julio Cesar Lobo)